quinta-feira, 16 de abril de 2009

Artigo II

Artigo II - Pertencemos a Jesus Cristo e a Maria na qualidade de escravos

68. Segunda verdade. ─ Do que Jesus é para nós, concluímos que não nos pertencemos, como diz o apóstolo (1 Cor 6, 19), e sim a ele, inteiramente, como seus membros e seus escravos, comprados que fomos por um preço infinitamente caro, o preço de seu sangue. Antes do batismo o demônio nos possuía como escravos, e o batismo nos transformou em escravos de Jesus Cristo e só devemos viver, trabalhar e morrer para produzir frutos para o homem-Deus (Rom 7, 4), glorificá-lo em nosso corpo e fazê-lo reinar em nossa alma, pois somos sua conquista, seu povo adquirido, sua herança. Pelo mesmo motivo o Espírito Santo nos compara:
1. a árvores plantadas ao longo das águas da graça, nos campos da Igreja, árvores que devem das seus frutos no tempo adequado;
2. aos galhos de uma videira de que Jesus Cristo é o tronco, e que devem produzir boas uvas;
3. a um rebanho cujo pastor é Jesus, e esse rebanho deve multiplicar-se e dar leite;
4. a uma boa terra de que Deus é o lavrador, e na qual a semente se multiplica, rendendo trinta, sessenta, cem vezes mais. Jesus amaldiçoou a figueira estéril (Mt 21, 19) e declarou condenado o servo inútil que não fizera valer o seu talento (Mt 25, 24, 30). Tudo isso nos prova que Jesus Cristo quer receber alguns frutos de nossas mesquinhas pessoas; quer receber boas obras, porque as boas obras lhe pertencem exclusivamente: "Criados em Jesus Cristo para boas ações" (Ef 2, 10). Essas palavras do Espírito Santo mostram que Jesus Cristo é o único fim de todas as nossas obras, e que devemos serví-lo não somente como servidores assalariados, mas como escravos de amor. Explico-me.

69. Há duas maneiras, aqui na terra, de alguém pertencer a outrem e de depender de sua autoridade. São a simples servidão e a escravidão, donde a diferença entre servo e escravo.
Pela servidão, comum entre os cristãos, um homem se põe a serviço de outro por um certo tempo, recebendo determinada quantia ou recompensa.
Pela escravidão, um homem depende inteiramente de outro durante toda a vida e deve servir a seu senhor, sem esperar salário nem recompensa alguma, como um dos animais sobre que o dono tem direito de vida e morte.

70. Há três espécies de escravidão: por natureza, por constrangimento e por livre vontade. Por natureza, todas as criaturas são escravas de Deus: "Domini est terra e plenitudo eius" (Sl 23, 1). Os demônios e os réprobos são escravos por constrangimento; e os justos e os santos o são por livre e espontânea vontade. A escravidão voluntária é a mais perfeita, a mais glorisa aos olhos de Deus, que olha o coração (1, Rs 16, 7), que pede o coração (Prov 23, 26) e que é chamado o Deus do coração (Sl 72, 26) ou da vontade amorosa, porque, por esta escravidão, escolhe-se sobre todas as coisas, a Deus e seu serviço, ainda quando não o obriga a natureza.

71. A diferença entre um servo e um escravo é total:
1. Um servo não dá a seu patrão tudo o que é, tudo o que possui ou pode adquirir por outrem ou por si mesmo; mas um escravo se dá integralmente a seu senhor, com tudo o que possui ou possa adquirir, sem nenhuma exceção.
2. O servo exige salário pelos serviços que presta a seu patrão; o escravo, porém, nada pode exigir, seja qual for a assiduidade, a habilidade, a força que empregue no trabalho.
3. O servo pode deixar o patrão quando quiser, ou ao menos quando expirar o tempo de serviço, mas o escravo não tem esse direito.
4. O patrão não tem sobre o servo direito algum de vida e morte, de modo que, se o matasse como mata um de seus animais de carga, cometeria um homicídio; mas, pelas leis, o senhor tem sobre o escravo o poder de vida e morte; de modo que pode vendê-lo a quem o quiser, ou matá-lo, como, sem comparação, o faria a seu cavalo.
5. O servo, enfim, só por algum tempo fica a serviço de um patrão, enquanto o escravo o é para sempre.

72. Só a escravidão, entre os homens, põe uma pessoa na posse e dependência completa de outra. Nada há, do mesmo modo, que mais absolutamente nos faça pertencer a Jesus Cristo e a sua Mãe Santíssima do que a escravidão voluntária, conforme o exemplo do próprio Jesus, que, por nosso amor, tomou a forma de escravo: Formam servi assipens - "Mas esvaziou-se a si mesmo, assumindo a condição de servo tomando a semelhança humana" (Filip 2, 7) - e da Santíssima Virgem, que se declarou a escrava do Senhor (Lc 1, 38). O apóstolo Paulo honra-se várias vezes em suas epístolas com o título de "servus Christi". A Sagrada Escritura chama muitas vezes os cristãos de "servi Chisti", e esta palavra "servus", conforme a observação acertada de um grande homem, Henri-Marie Boudon, significava, outrora, apenas escravo, pois não existiam servos como os de hoje, e os ricos só eram servidos por escravos ou libertos. E para que não haja a menor dúvida de que somos escravos de Jesus Cristo, o Concílio de Trento usa a expressão inequívoca "mancípia Christi", e no-la aplica: escravos de Jesus Cristo. Isto posto:

73. Digo que devemos pertencer a Jesus Cristo e servi-lo, não só como servos mercenários, mas como escravos amorosos, que, por efeito de um grande amor, se dedicam a servi-lo como escravos, pela honra exclusiva de lhe pertencer. Antes do batismo nos fez escravos de Jesus Cristo. Importa, pois, que os cristãos sejam escravos ou do demônio ou de Jesus Cristo.

74. O que digo absolutamente de Jesus Cristo, digo-o também da Virgem Maria, pois Jesus Cristo, escolhendo-a para sua companheira inseparável na vida, na morte, na glória, em seu poder no céu e na terra, deu-lhe pela graça, relativamente à sua majestade, os mesmos direitos e privilégios que ele possui por natureza. "Tudo que convém a Deus pela natureza, convém a Maria pela Graça", dizem os santos. Assim, conforme este ensinamento, pois que ambos têm a mesma vontade e o mesmo poder, têm também súditos, servos e escravos.

75. Podemos, portanto, seguindo a opinião dos santos e de muitos doutos, dizer-nos e fazer-nos escravos da Santíssima Virgem, para deste modo nos tornarmos mais perfeitamente escravos de Jesus Cristo. A Santíssima Virgem é o meio de que Nosso Senhor se serviu para vir a nós; e é o meio de que nos devemos servir para ir a ele. Bem diferente é ela das outras criaturas, as quais, se a elas nos apegar-mos, poderão afastar-nos que aproximar-nos de Deus. A mais forte inclinação de Maria é unir-nos a Jesus Cristo, seu divino Filho; e a mais forte inclinação do Filho é que vamos a ele por meio de sua Mãe Santíssima. E isto é para ele tanta honra e prazer, como seria para um rei honra e prazer, se alguém, para tornar-se mais perfeitamente seu escravo, se fizesse escravo da rainha. Eis porque os Santos Padres, e São Boaventura com eles, dizem que a Santíssima Virgem é o caminho para chegar a Nosso Senhor: "Via veniandi ad Cristo est appropinquare ad illam".


76. Além disso, se a Virgem Santíssima, como já disse (v. n. 38) é a rainha e soberana do céu e da terra ─
"Ao poder de Deus tudo é submisso, até a Virgem;
ao poder da Virgem tudo é submisso, até Deus".

─ dizem Santo Anselmo, São Bernardo, São Boaventura, não possui ela tantos súditos e escravos quantas criaturas existem? Não é razoável que, entre tantos escravos por constrangimento, haja alguns por amor, que, de boa vontade e na qualidade de escravos, escolham Maria para sua soberana? Pois então os homens e os demônios terão seus escravos voluntários e Maria não há de tê-los? Seria desonra para um rei se a rainha, sua companheira, não possuísse escravos sobre os quais tivesse direito de vida e morte, pois a honra e o poder da rainha; e pode-se acreditar que Nosso Senhor, o melhor de todos os filhos, que deu a sua Mãe Santíssima parte de todo o seu poder, considere um mal ter ela escravos? Terá ele menos respeito e amor a sua Mãe do que teve Assuero a Ester e Salomão a Betsabé? Quem ousaria dizê-lo ou pensá-lo sequer?

77. Mas onde me leva a minha pena? Por que me detenho aqui a provar uma coisa tão evidente? Se alguém recusa confessar-se escravo de Maria, que importa? Que se faça e se diga escravo de Jesus Cristo. É o mesmo que ser escravo da Santíssima Virgem, pois Jesus é o fruto e a glória de Maria. E isto se faz perfeitamente pela devoção de que falaremos a seguir.

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